Vendo o bem de Deus numa comunidade pecadora
- Christian Lo Iacono

- 24 de jul. de 2024
- 15 min de leitura
Atualizado: 25 de jul. de 2024
[4] Sempre dou graças ao meu Deus por vocês, por causa da graça de Deus que foi dada a vocês em Cristo Jesus. [5] Porque em tudo vocês foram enriquecidos nele, em toda a palavra e em todo o conhecimento, [6] assim como o testemunho de Cristo tem sido confirmado em vocês, [7] de maneira que não lhes falta nenhum dom, enquanto aguardam a revelação de nosso Senhor Jesus Cristo. [8] Ele também os confirmará até o fim, para que vocês sejam irrepreensíveis no Dia de nosso Senhor Jesus Cristo. [9] Fiel é Deus, pelo qual vocês foram chamados à comunhão de seu Filho Jesus Cristo, nosso Senhor.
1Coríntios 1:4-9
O costume regular de Paulo ("sempre") é dar graças por seus convertidos, bem como por outros crentes. Na verdade, sua capacidade de dar graças a Deus por esses crentes provavelmente diz muito sobre o caráter do próprio apóstolo. Mesmo tendo de falar duramente a eles, aliás, às vezes até mesmo sendo sarcástico e envergonhando-os, ele ainda assim não deixa de ser grato por eles; pois, em última análise, embora ele se sinta responsável por eles assim como um pai se sente por seus filhos (4.14-21), eles são um povo pertencente a Deus, e não a ele.
Em cada pessoa redimida há evidências da graça de Deus, que provoca a gratidão de Paulo tanto a Deus quanto por causa deles. Ao usar o possessivo "meu", o que Paulo tem em mente é algo próximo de "o Deus a quem sirvo". Deleitar-se em Deus por causa da operação de Deus na vida de outros, até mesmo na vida daqueles de quem alguém se sente forçado a discordar, é prova segura de que a pessoa tem consciência de ser objeto das misericórdias do Senhor. Era esse o caso de Paulo. Quem é autossuficiente não costuma ter essa atitude.
No caso dos coríntios, a base específica da ação de graças de Paulo é a "graça de Deus que foi dada a vocês em Cristo Jesus". Em geral, isso é visto como um agradecimento pela graça como tal, ou seja, pelo gracioso derramamento da misericórdia de Deus em Cristo sobre quem não merece. No entanto, para Paulo o termo charis ("graça") muitas vezes está intimamente associado a charisma/ charismata ("dom/dons") e, em tais casos, se refere às expressões concretas da atividade graciosa de Deus no povo de Deus (Rm 12.6: “diferentes dons segundo a graça que nos foi dada”). Aliás, a própria palavra "graça" por vezes denota essas manifestações concretas — as "graças" (dons) – da graça de Deus. Assim, por exemplo, adiante nessa carta (16.3) e em outros textos (2Co 8 e 9), charis se refere não apenas à "graça de dar" por parte dos coríntios, mas concretamente também aos seus dons.
Parece que o que está em vista aqui é esse entendimento "concreto" da graça, visto que o detalhamento a seguir (v. 5-7) especifica suas manifestações da perspectiva de certos charismata ("dons"), aos quais na realidade os coríntios tendiam a dar muito valor. É claro que a ênfase de Paulo é bem diferente da deles. Eles enfatizavam os dons em si; ele, a atividade graciosa de Deus, que dava esses dons ao seu povo. Justamente porque são "dados" por Deus e são expressões da "graça" de Deus (imerecida pelos beneficiários), não pode haver motivo de vanglória da parte deles. O dilema de Paulo nessa carta é convencer os coríntios a partilhar do pensamento paulino sobre esses benefícios, pois com arrogância eles se vangloriam das próprias coisas que, por serem dons/dádivas, não podem ser fonte de vanglória pessoal: “Pois quem é que faz com que você sobressaia? E o que é que você tem que não tenha recebido? E, se o recebeu, por que se gloria, como se não o tivesse recebido?” (4.7).
v. 5
Em seguida, Paulo enumera especificamente as "graças" pelas quais está agradecendo. Paulo diz que eles "em tudo foram enriquecidos". Mas o texto seguinte deixa claro que sua atenção está centrada em algo bem mais específico, a saber, "em toda a palavra [ou tipo de fala] (logos) e em todo o conhecimento (gnosis)". Normalmente, essas não seriam as únicas coisas — ou coisas normais — pelas quais alguém daria graças em um grupo de novos cristãos. Aliás, assinala-se com frequência que, no caso deles, Paulo não menciona coisas como amor, fé ou esperança (como em 1 Tessalonicenses, Filipenses ou Colossenses). Isso é fato, sem dúvida, mas não significa necessariamente que eles não têm essas qualidades; afinal, em uma passagem posterior e quase paralela (2Co 8.7), os dois itens mencionados aqui são novamente incluídos, juntamente com a fé, a sinceridade e o amor.
É praticamente certo que Paulo escolhe mencionar esses itens porque eram bem visíveis na comunidade. Mas também acontece de serem itens que funcionam de algumas maneiras bastante negativas entre eles. O que Paulo parece estar fazendo, então, é voltar o foco deles das suas "graças" (coisas boas em si mesmas porque edificam a igreja) para Deus, que as deu, e para Cristo, "em quem" elas foram postas à disposição. Isso vale até mesmo para a imagem expressa com "vocês foram enriquecidos". Em contextos parecidos, tanto em cartas anteriores quanto em posteriores, na maioria das vezes Paulo emprega o verbo "abundar" para falar da superabundância na vida cristã.
O que é importante aqui é que, embora o conceito de Deus possuir "riquezas" seja recorrente nas cartas de Paulo (“riquezas da graça”, “riquezas de bondade”, “riquezas em glória”), a imagem de ser "enriquecido em (ou por) Cristo" é exclusiva das cartas aos coríntios. Em cada emprego, ela ocorre em contraste com "pobreza" — de Cristo, cuja "pobreza" operou o "enriquecimento" deles (2Co 8.9), ou de Paulo, cuja pregação o tornou possível (4.8-13; 2Co 6.10). Por causa do sentido sarcástico com que a imagem aparece em um momento posterior (4.8), pode-se especular se esse não é um dos termos deles que Paulo está usando agora em seu sentido positivo, justamente porque em Cristo Jesus a experiência deles de receber dons do Espírito é um enriquecimento genuíno.
Mas quais são as "graças" específicas indicadas pelas palavras logos (“fala/discurso") e gnosis ("conhecimento")? Tem havido intenso debate sobre o significado dessas duas palavras, mas o contexto da própria 1Coríntios fornece toda a ajuda necessária. Ambos os termos ocorrem com frequência muito maior nas duas cartas aos coríntios do que em todas as outras cartas paulinas (logos – 26x em 1 e 2Co; e 38x nas outras 8 cartas [+20 nas Pastorais]; gnosis – 16x em 1 e 2Co; e 7x nas outras). Essa frequência é vista em contextos que deixam claro que são termos utilizados pelos próprios coríntios.
É significativo que mais tarde as duas palavras apareçam em um contexto bem positivo como dons do Espírito (caps. 12—14), mas também negativamente em outro contexto da carta. Aqui o termo logos (cf. 12.8) provavelmente significa algo parecido com "em todo tipo de 'enunciação espiritual'" e se refere em especial aos muitos dons de enunciação que serão observados posteriormente (conhecimento, sabedoria, línguas, profecia etc.) – embora os coríntios tenham um interesse mais específico em "falar". Mas nessa polêmica inicial o termo se refere de forma pejorativa àquilo que é meramente humano, em contraste com o logos da cruz (1.17,18; cf. 2.1-4). O mesmo acontece com gnosis. Mais tarde (caps. 12-14), como charisma, o termo se refere ao dom de conhecimento especial, provavelmente relacionado com a revelação profética (12.8; 13.2; 14.6). Contudo, em uma passagem anterior (8.1-13), ele serve para eles de base da conduta cristã e, como tal, sofre pesada crítica de Paulo.
O que, então, Paulo está fazendo aqui? Parece que está apanhando um ou dois dos termos usados por eles, itens de sua espiritualidade nos quais talvez depositassem certo excesso de autoconfiança. Nas áreas de que se vangloriam, tais como "enunciação [fala]" ou "conhecimento", Paulo afirma que estão agindo de maneira meramente humana e, por conseguinte, não estão de modo algum "no Espírito". Apesar disso, esses mesmos elementos aparecem como dons legítimos do Espírito pertencentes à era presente (12.8-11; 13.8-12) e que, colocados na perspectiva correta, edificarão a igreja (14.1-6). Justamente porque são dons espirituais (v. 7), dados por Deus em Cristo Jesus, Paulo pode ser sinceramente grato por eles.
v. 6
É difícil estabelecer o sentido exato da conjunção que inicia essa oração gramatical e, por conseguinte, também estabelecer a relação entre essas palavras e o que ele acabou de dizer. Na maioria das vezes, tal como na NIV original, a frase é entendida como uma oração causal, que "explica a razão da riqueza da dádiva espiritual dos coríntios. Aquela causa era um testemunho centrado em Cristo" (O’Brien). No entanto, o mais provável é que, conforme se vê na atual NIV, o grego kathos tenha o sentido comparativo usual ("exatamente como", "assim como"). Nesse caso, a palavra deve ter sido usada com o mesmo sentido com que Paulo a usou em uma carta anterior (1Ts 1.5), em que, depois de afirmar que seu evangelho chegou a eles com poder, Paulo acrescenta o lembrete "assim como vocês bem sabem". Aqui, portanto, ele provavelmente está sugerindo que os dons deles – dons pelos quais ele é sinceramente grato – são a evidência de que "nosso testemunho acerca de Cristo foi confirmado entre vocês". Se levarmos a sério que, tal como está em nosso texto, o sujeito implícito da passiva é "Deus", então a oração está dizendo que foi Deus Pai quem confirmou o testemunho de Paulo acerca de Cristo ao conceder-lhes essas dádivas do Espírito, que é exatamente o que a oração seguinte (v. 7) passará a reiterar.
Embora incomum em Paulo (cf. 2.1; 2Ts 1.10; 2Tm 1.8), o termo "testemunho" se refere ao próprio evangelho e provavelmente é usado por causa do verbo "confirmar". Assim, a oração toda funciona como uma metáfora tirada do direito comercial. Quando pregou o evangelho em Corinto, Paulo deu testemunho das boas-novas acerca de Cristo, sobretudo de sua morte (1.18-25; 2.1,2) e ressurreição (15.1-11); o próprio Deus "garantiu" a verdade da mensagem ao enriquecê-los com todo o tipo de dom espiritual. Isso também significa que a expressão "em vocês" (cf. NIV de 1984) transmite o sentido de "entre vocês" ou, como a NIV traduz agora: "no meio de vocês" (cf. NRSV, NAB).
De modo que, conforme acontece ao longo de toda a ação de graças, a ênfase nessa oração gramatical é Cristo. No entanto, também é possível enxergar aqui uma referência oculta ao ministério do próprio Paulo entre eles, visto que os dois se sustêm juntos ou caem juntos nessa comunidade.
v. 7
Essa oração gramatical serve para concluir o assunto tratado até aqui, ou seja, a gratidão de Paulo pelos dons/dádivas que eles têm do Espírito, os quais servem como confirmação divina tanto do evangelho em si quanto de sua pregação por Paulo em Corinto. Mas, ao acrescentar o comentário escatológico no final, Paulo agora também procura situar os dons/dádivas recebidos pelos coríntios na devida perspectiva escatológica do "já/ainda não". A oração propriamente dita é uma oração final que modifica a palavra confirmadora imediatamente precedente (v. 6), de maneira que, recorrendo ao passado, os segmentos de oração gramatical daquela passagem recapitulam, junto com esse segmento, aquilo que foi dito nos segmentos imediatamente precedentes (v. 4,5). Nesse sentido, em síntese: "Agradeço ao meu Deus pela 'graça' concedida a vocês (v. 4), com a qual Deus os 'enriqueceu' com dons específicos do Espírito (v. 5), da mesma maneira que historicamente ela operou no meio de vocês mediante a confirmação divina de nosso testemunho acerca de Cristo (v. 6) de modo que não faltou a vocês nenhum dom/dádiva do Espírito (v. 7)".
Não se sabe com segurança o sentido exato de "não falta a vocês nenhum dom espiritual". Em geral, o objeto do verbo "faltar" ocorre no caso genitivo, e assim significaria que, tal como a NIV traduz, eles têm em potencial à sua disposição todos os dons de Deus. Mas aqui, como na asserção inicial (v. 5, "de todas as maneiras"), o verbo é modificado por uma construção prepositiva e, por isso, pode significar que, seja em comparação com outros, seja dentro das expectativas normais de cristãos que têm o Espírito, eles não têm uma medida menor de quaisquer dos dons que têm. Embora (por causa da gramática) muitos prefiram essa segunda opção, o mais provável é que aqui a sintaxe seja influenciada pela expressão anterior ("em tudo ... enriquecidos"). Assim, a frase apenas repete de forma negativa o que já foi afirmado positivamente. Isso também significa que a palavra charisma (“dom espiritual"), que poderia ser vista como referência mais genérica à graciosa dádiva da redenção, deve, assim como naquela declaração anterior, ser entendida mais especificamente como referência àquelas capacitações especiais do Espírito Santo analisadas com mais detalhe mais adiante na carta (caps. 12-14; cf. Rm 12.6).
Porém, gratidão pelos dons presentes não é a última palavra – nem a única. Para Paulo, tais dons devem sempre se manifestar enquanto "aguardam a revelação de nosso Senhor Jesus Cristo". Aliás, talvez haja na igreja contemporânea uma correlação entre a perda generalizada dessas "graças" e a ausência generalizada de ardente expectativa pela consumação final. Deve-se assinalar aqui que, embora a perspectiva teológica de Paulo seja rigorosamente escatológica, uma comparação entre essa ação de graças e a de sua carta mais antiga (1Ts 1.2-5) revela que um comentário escatológico não é um elemento necessário na ação de graças paulina (na verdade, em cartas posteriores ocorre apenas em Filipenses e Colossenses).
Por que, então, esse comentário adicional sobre a vinda de Cristo? É claro que pode simplesmente significar que esse assunto está sempre diante do próprio apóstolo, uma vez que para Paulo a salvação era basicamente uma realidade escatológica, iniciada com a vinda de Cristo e a ser consumada com sua volta iminente. Mas nesse caso também é igualmente provável que esse assunto sempre presente esteja sendo sublinhado pelo fato de que, na compreensão escatológica dos próprios coríntios, a existência deles era, ao que parece, ultrarrealizada, o que estava especificamente relacionado com sua experiência do "dom espiritual" de línguas (veja comentário de 13.1). Por isso, a gratidão de Paulo pelos dons que eles têm inclui um lembrete de que ainda aguardam a glória final, pois parece que o fato é que alguns deles não têm essa ardente expectativa (veja comentários de 4.8 e 15.12).
O que eles aguardam com ardente expectativa é que "nosso Senhor Jesus Cristo seja revelado", com o que Paulo volta ao tríplice "nome" usado acima na saudação (v. 3, e somente mais uma vez nessa carta — na súplica inicial [v. 10]). Embora Paulo costumeiramente fale da volta de Cristo empregando o termo "vinda" (parousia), em uma carta anterior (2Ts 1.7) ele também se referiu a ela como a "revelação" (apokalypsis) de Cristo. Aqui a escolha dos substantivos é provavelmente menos determinada por qualquer nuance de ideias entre "vinda" e "revelação" e mais pelo sentido geral de todo o parágrafo, que tem Deus como sujeito. Por consequência, Deus consumará os séculos mediante a "revelação" final de seu Filho; é essa revelação cristológica final que eles ainda aguardam que está sendo trazida à lembrança dos coríntios.
v. 8
Com essa oração gramatical, Paulo finalmente conclui esse agora longo período (que começou no v. 4). Para isso, ele desenvolve o comentário escatológico feito no final da frase anterior (v. 7), agora com respeito ao significado disso para os próprios coríntios. É importante ressaltar que a linguagem dessa oração gramatical é parecida com a da prece encontrada na primeira de suas cartas (1Ts 3.13). Por isso, é possível que o propósito da oração gramatical seja muito parecido com o de relatórios de prece em outras ações de graças, mas com a importante diferença de que aqui temos uma clara afirmação, e não apenas uma oração de desejo. Aqui Paulo está confiante de que Deus realmente os "confirmará" até o fim.
É significativo que Paulo declare isso mediante a repetição do verbo "confirmar", que apareceu na metáfora anterior (v. 6). Assim, em vez de seu habitual "Deus os fortalecerá ou estabelecerá", Paulo diz que, assim como Deus inicialmente "garantiu" nosso testemunho de Cristo enquanto estávamos com vocês, Deus também "garantirá" ou "confirmará" vocês mesmos "até o fim". Que essa é uma repetição intencional da metáfora jurídica anterior (v. 6) é ainda comprovado pela palavra "irrepreensíveis", que tem o sentido de estarem sem culpa (com referência à lei) quando aparecerem diante de Deus no juízo final porque receberam a justiça de Cristo. Por fim, o uso da expressão "no dia de nosso Senhor Jesus Cristo" também aponta para o juízo final. Paulo se apropria da expressão escatológica veterotestamentária "o dia do Senhor" (veja Am 5.18-20; Jl 2.31) e a torna cristológica. Ainda é "o dia do Senhor", mas "o Senhor" não é outro que não Jesus Cristo (veja tb. 3.13-15; 5.5; cf. 1Ts 5.2).
O que é notável é que Paulo se expresse com tanta confiança sobre uma comunidade cujo comportamento no momento é tudo, menos inculpável, e que em várias ocasiões ele precisa exortar com os tipos mais severos de advertência. É claro que o segredo se encontra no sujeito do verbo, "ele" (= Deus). Caso a confiança de Paulo estivesse nos coríntios, ele estaria em apuros. Mas, assim como acontece em passagens posteriores (5.6-8 e 6.9-11), na teologia de Paulo o indicativo (a prévia ação graciosa de Deus) sempre precede o imperativo (a obediência deles como resposta à graça) e é o fundamento da confiança do apóstolo.
Nem todos, entretanto, estão de acordo quanto a "Deus" ser ou não de fato o sujeito do pronome "ele". Na verdade, o antecedente mais natural é "nosso Senhor Jesus Cristo", que precede imediatamente o pronome. No entanto, há boas razões para pensar que Paulo teve "Deus" em mente como sujeito. Em primeiro lugar, porque Deus, a quem Paulo está dando graças, é o sujeito implícito de todos os verbos que no parágrafo estão na voz passiva. Em segundo lugar e em particular, Deus é o sujeito implícito da ocorrência anterior do verbo "confirmar" (v. 6), o que sinaliza que Deus é também o único que no fim confirmará os coríntios. Em terceiro lugar, na exclamação final reconhece-se de novo que Deus é fiel em fazer com que tudo isso venha a acontecer.
Assim, ainda que Paulo esteja interessado em lembrar aos membros da igreja de que eles ainda não "chegaram lá", ao mesmo tempo lhes apresenta sua grande confiança de que no fim, pela ação do próprio Deus, eles conseguirão. Dessa forma, por meio da ação de graças Paulo faz com que a confiança deles em si mesmos e nos dons recebidos seja redirecionada para o Deus eterno, de quem e para quem são todas as coisas.
v. 9
Tudo o que foi dito até aqui na ação de graças — tanto o ato divino antecedente da graça em favor deles quanto o fato de Deus os "garantir" no futuro dia do juízo — é agora resumido nessa exclamação gloriosa. De forma bem parecida com a conclusão da primeira de suas cartas (1Ts 5.24), Paulo junta a realidade da fidelidade divina com o chamado divino dos crentes. Como ele pode ter certeza de que eles, e logo eles!, serão achados inculpáveis naquele dia? Porque "Deus é fiel", ele lhes assegura, baseando sua confiança em uma das mais arraigadas ideias acerca de Deus encontradas no AT. O Deus de Israel era um Deus fiel, sempre confiável e incapaz de ser diferente, com quem, portanto, era possível contar para o cumprimento de todas as promessas divinas (Dt 7.9; Sl 145.13).
Nesse caso, contudo, a afirmação sobre o caráter de Deus não depende de realidades do AT, mas de sua obra mais recente em Corinto mesmo, obra em que ele "os chamou à comunhão de seu Filho Jesus Cristo, nosso Senhor". A fidelidade de Deus em tê-los chamado e redimido serve agora de fundamento da esperança de Paulo na salvação definitiva deles no final. Essas palavras retomam o tema do "chamado" encontrado na saudação inicial e na indicação dos destinatários (v. 1,2, q.v.), em especial o chamado divino aos próprios coríntios para se tornarem crentes (cf. tb. 1.24). Assim, de novo Paulo faz com que a atenção deles seja redirecionada de si mesmos para o Deus eterno, o qual, por tê-los chamado, é responsável pela própria existência deles como comunidade de fé.
Aqui o chamado é expresso como "comunhão de seu Filho". Embora esse linguajar torne a aparecer bem mais tarde em uma passagem sacramental (10.16), não é certo que aqui esteja aludindo ao sacramento. A referência aqui é aquilo que ocorreu por ocasião da conversão deles. O chamado para Cristo é um chamado para estar em comunhão com Cristo por meio do Espírito (ct. 2Co 13.13; Fp 2.1). Assim, com toda a probabilidade, deve-se entender essa formulação não somente em seu aspecto posicional, mas também relacional. Os crentes estão não apenas em Cristo e, como tal, libertos da culpa de seus pecados, mas também em comunhão com Cristo e, como tal, têm o privilégio de comungar com ele por meio do Espírito. Mas o uso desse linguajar para se referir à conversão cristã ou à vida cristã é incomum em Paulo e, à luz do que está prestes a ser dito na frase imediatamente a seguir, pode ter sido uma escolha para também refletir a ideia da comunhão dos crentes que foi formada em seu Filho, mas isso parece incerto à luz do uso soteriológico de "chamar".
Por fim, deve-se assinalar mais uma vez que Deus é o sujeito de todas os atos da ação de graças. E em cada caso essa obra é mediada por ou focada em "seu Filho, Jesus Cristo, nosso Senhor". Assim, a ênfase cristológica iniciada na saudação é completada de modo ainda mais enfático nessa ação de graças introdutória. Tudo o que Deus tem feito e fará pelos coríntios é feito expressamente em "Jesus Cristo, nosso Senhor".
Conclusão
Com essas belas cadências são encerrados os assuntos introdutórios da carta. Mas pode-se aprender muito com essas palavras. Elas não apenas prenunciam os assuntos da carta propriamente dita, mas também o fazem de uma maneira que revela uma boa dose da teologia de Paulo e de seu próprio cuidado pastoral. Conforme a carta revelará, há alguns relacionamentos tensos nessa igreja, tanto entre a igreja e Paulo quanto internamente entre os membros. Além disso, a causa de muitas dessas tensões é que entre eles tem havido abuso de alguns dons de Deus. No entanto, Paulo ainda consegue iniciar com uma sincera oração de gratidão tanto pelos próprios coríntios quanto pelos seus dons, que para Paulo são prova da confirmação divina de sua pregação entre eles. Mais adiante, Paulo terá de tratar dos abusos; por enquanto, sua atitude é a gratidão. Aqui sua preocupação é que eles redirecionem sua atenção — de si mesmos para Deus e Cristo e de uma escatologia ultrarrealizada para uma consciência saudável da glória que é ainda futura.
Em grande parte de sua existência, a igreja tem sofrido o oposto do problema coríntio, a saber, uma perspectiva escatológica "sub realizada", em que quase nada se espera de Deus no tempo presente. O século 20, por meio tanto do movimento pentecostal tradicional quanto do movimento carismático, que é mais recente, testemunhou um ressurgimento de muitos dos dons mais visíveis do Espírito. Tal como em Corinto, entre alguns cristãos dava-se atenção aos dons mais espetaculares, às vezes conduzindo ao orgulho espiritual, ao passo que outros, em sua própria forma de orgulho, têm rejeitado totalmente tal capacitação com dons como uma possibilidade para a igreja contemporânea. Com essa oração de ação de graças, devemos aprender a ser gratos por esses dons, como prova da confirmação divina do evangelho, e também a nos certificar de que nosso foco seja como o de Paulo — em Deus e Cristo, de quem e por meio de quem são todas as coisas.

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