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Sermão do Monte - Parte III


— Bem-aventurados os que têm fome e sedede justiça, porque serão saciados. — Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia. — Bem-aventurados os limpos de coração, porque verão a Deus. Mateus 5:6-8


Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados” (Mt 5.6). A busca da justiça, infelizmente, não é admirada nem entre os que se professam cristãos. Muitos hoje em dia estão preparados para buscar outras coisas: maturidade espiritual, felicidade verdadeira, o poder do Espírito, capacitação para o testemunho etc. Outros vão de pregador em pregador, de conferência em conferência, procurando alguma vaga “bênção” do alto. Eles têm fome de experiência espiritual; têm sede da percepção de Deus.


Mas quantos têm fome e sede de justiça? Não estou dizendo com isso que essas outras coisas não sejam desejáveis, mas, sim, que elas não são tão fundamentais quanto a justiça. O indivíduo marcado pela pobreza em espírito (v. 3), que chora pelo pecado pessoal e social (v. 4) e se aproxima de Deus e dos outros com mansidão (v. 5), também deve ser caracterizado pela fome e sede de justiça (v. 6). Não que ele queira ser um pouquinho melhor, nem muito menos que considere a justiça um luxo opcional a ser acrescentado as suas outras graças; ao contrário, ele tem fome e sede de justiça. Ele não pode sobreviver sem justiça; ela é tão essencial para ele quanto comer e beber.


A maioria das pessoas praticamente nunca sentiu fome nem sede de verdade. Não passamos pelas provações que muitos suportaram na última guerra mundial, por exemplo. Mas quem já passou por situações de falta de dinheiro ou comida? Quem, orgulhoso demais para pedir ajuda e talvez esperando para ver se Deus iria suprir suas necessidades, já não viveu à base de água enquanto o estômago roncava? As normas do reino indicam que homens e mulheres tenham fome e sede de justiça. Isso é tão fundamental para a vida cristã que Martyn Lloyd-Jones escreveu: “Quanto se trata de profissão de fé cristã, não conheço teste melhor para uma pessoa aplicar a si mesma do que um versículo como esse. Se, para você, esse versículo é uma das declarações mais abençoadas de toda a Escritura, pode ter certeza de que você é um cristão. Mas, se não for, é melhor examinar mais uma vez os [seus] fundamentos”.


O que é essa justiça que devemos buscar? Nas epístolas de Paulo, “justiça” pode se referir à justiça de Cristo, que Deus credita na conta do crente, do mesmo modo que credita o pecado do crente na conta de Jesus Cristo. Se fosse essa a justiça mencionada aqui, Jesus estaria convidando os não crentes a buscarem a justiça que Deus concede em virtude da morte substitutiva de Cristo. Alguns teorizaram que no Evangelho de Mateus “justiça” se refere à defesa dos oprimidos e afligidos. Ultimamente, porém, os que estudam o emprego da palavra em Mateus reconhecem cada vez mais que “justiça” aqui (e nos vv. 10 e 20) significa um padrão de vida em conformidade com a vontade de Deus. Justiça, portanto, inclui em seu campo semântico todos os significados derivados ou especializados, mas não pode se limitar a nenhum deles.


Assim, quem tem fome e sede de justiça tem fome e sede de viver conforme a vontade de Deus. É alguém que não está à deriva num mar de religiosidade vazia, muito menos à toa na vida distraído com banalidades, como ocorre em nossos dias. Em vez disso, todo o seu ser ecoa a oração de um santo escocês que clamava: “Ó, Deus, faz-me tão justo quanto um pecador perdoado pode ser!” O seu prazer é a Palavra de Deus, pois onde mais se encontra claramente expressa a vontade de Deus, à qual esse indivíduo tem fome de se conformar? Ele quer ser justo não apenas porque teme a Deus, mas porque a justiça é seu mais elevado desejo neste mundo.


E qual é o resultado? Os que têm fome e sede de justiça serão fartos. O contexto exige que entendamos que a bênção significa: “serão fartos com justiça”. O Senhor concede a essa pessoa faminta o desejo do coração dela. Isso não quer dizer que agora a pessoa está tão satisfeita com a justiça recebida que sua fome e sede de justiça estão saciadas para sempre. Em outra passagem, Jesus fala desse assunto: “Aquele que beber da água que eu lhe der nunca mais terá sede” (Jo 4.14); “Eu sou o pão da vida. Quem vem a mim jamais terá fome, e quem crê em mim jamais terá sede” (Jo 6.35). Portanto, há um sentido em que estamos satisfeitos com Jesus e com tudo o que ele é e provê. No entanto, em outro sentido ainda continuamos insatisfeitos.


Um exemplo de Paulo permite entender esse paradoxo. Paulo pode testemunhar: “Sei em quem tenho crido e estou certo de que ele é poderoso para guardar aquilo que me foi confiado até aquele Dia” (2Tm 1.12); mas o apóstolo também pode dizer: “O que eu quero é conhecer Cristo e o poder da sua ressurreição, tomar parte nos seus sofrimentos e me tornar com ele na sua morte” (Fp 3.10). Em outras palavras, Paulo chegou ao conhecimento de Cristo, mas, ainda assim, quer conhecê-lo melhor. Semelhantemente, aquele que tem fome e sede de justiça é abençoado e saciado por Deus, mas a justiça com que é saciado é tão maravilhosa que ele tem fome e sede de receber mais. Esse ciclo natural de crescimento é fácil de entender tão logo nos lembramos de que nesse texto justiça não se refere a obedecer a certas regras, mas à conformidade com toda a vontade de Deus. Quanto mais se busca conformidade com a vontade de Deus, mais atraente essa meta se torna para nós e maiores são os avanços em sua direção.


Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia” (Mt 5.7). Alguns interpretam esse versículo de forma legalista, como se ele dissesse que a única maneira de obter misericórdia de Deus fosse demonstrando misericórdia para com os outros. Desse modo, a misericórdia de Deus passaria essencialmente a ser dependente da nossa. Mas o que é misericórdia? Qual a diferença entre misericórdia e graça? Os dois termos são frequentemente sinônimos, mas, quando existe uma distinção entre os dois, parece que a graça é uma resposta amorosa quando não se merece amor, enquanto misericórdia é uma resposta amorosa induzida pela situação de infelicidade e completo desamparo daquele por quem se deve demonstrar amor. Ou seja, a graça responde ao que não tem merecimento; a misericórdia, ao angustiado e abatido.


Nessa bem-aventurança, Jesus diz que nós temos de ser misericordiosos. Temos de ser compassivos e bondosos, sobretudo para com os aflitos e desamparados. Se não formos misericordiosos, não veremos a misericórdia. Mas como pode alguém que não é misericordioso receber misericórdia? Quem não é misericordioso inevitavelmente é tão ignorante de seu próprio estado que acha que não precisa de misericórdia. Essa pessoa não consegue se ver como pobre e desgraçada. Portanto, como Deus pode ser misericordioso com essa pessoa? Ela é como aquele fariseu no templo, que não teve misericórdia do publicano encolhido num canto (Lc 18.10). Em contrapartida, o homem cuja vida reflete essa bem-aventurança tem plena consciência de sua miséria espiritual (Mt 5.3), chora por causa disso (5.4) e tem fome e sede de justiça (5.6). Ele é misericordioso para com os aflitos porque reconhece que é um deles; demonstrando misericórdia, ele também alcançará misericórdia.


O cristão, além disso, está numa posição intermediária. Ele deve perdoar aos outros porque antes Cristo já o perdoou (Ef 4.32; Cl 3.13). Ao mesmo tempo, reconhece sua constante necessidade de mais perdão e se torna também perdoador por causa dessa perspectiva. O cristão perdoa porque foi perdoado; ele perdoa porque precisa de perdão. Precisamente da mesma maneira e pela mesma razão o discípulo de Jesus é misericordioso. Dizem que um alcoólatra que não admite que é alcoólatra odeia todos os outros alcoólatras. Do mesmo modo, quase sempre é verdade que o pecador que não reconhece seu pecado odeia todos os outros pecadores. Mas a pessoa que reconheceu o próprio desamparo e indigência é grata por toda misericórdia que a alcança e aprende a ser misericordiosa com os outros.


Essa bem-aventurança constrange todo aquele que se declara discípulo de Jesus Cristo a fazer a si mesmo algumas perguntas difíceis. Eu sou misericordioso ou arrogante com os menos afortunados? Sou bondoso ou grosseiro quando lido com os marginalizados? Sou solícito ou insensível com os desvalidos? Sou compassivo ou impaciente com os oprimidos? Tenho plena convicção de que, se o Espírito de Deus trouxer outro período de avivamento ao mundo ocidental, um dos primeiros sinais será o reconhecimento da falência espiritual que encontra satisfação em Deus e sua justiça e que resulta em plena misericórdia para com os outros.


Bem-aventurados os limpos de coração, porque verão a Deus” (v. 8). Aqui o Senhor confere bênção especial não aos de intelecto mais aguçado nem aos emocionalmente piedosos, mas aos puros de coração. Na linguagem figurada bíblica, o coração é o centro da personalidade. A avaliação que Jesus faz do coração natural, porém, não é muito animadora. Em outra passagem de Mateus, ele diz: “Porque do coração do homem procedem maus pensamentos, homicídios, adultérios, imoralidade sexual, furtos, falsos testemunhos, blasfêmias” (15.19; Jr 17.9; Rm 1.21; 2.5). Apesar desse diagnóstico horrível, a sexta bem-aventurança insiste em que a pureza de coração é o pré-requisito indispensável para a comunhão com Deus, para “ver” a Deus. Sl 24.3-4: “Quem subirá ao monte do Senhor? Quem há de permanecer no seu santo lugar? O que é limpo de mãos e puro de coração, que não entrega a sua alma à falsidade, nem faz juramentos com a intenção de enganar” (73.1). Deus é santo. Por isso, o autor da carta aos Hebreus insiste: “Busquem a santificação, sem a qual ninguém verá o Senhor” (2.14).


Não se deve confundir pureza de coração com observância de regras manifestada exteriormente. Como o coração é que precisa ser puro, essa bem-aventurança nos faz perguntas desconcertantes, tais como: Em que você pensa quando sua mente fica em ponto morto? Quando fica sabendo de um caso em que uma pessoa passou a perna em outra, em que medida isso lhe causa satisfação, independentemente do grau de astúcia e engenhosidade do engodo? Você gosta de humor negro, ainda que seja muito engraçado? A que você se dedica com fidelidade? O que de verdade você deseja mais do que qualquer outra coisa? Que coisa e pessoas você ama? Até que ponto suas ações e palavras são o reflexo preciso do que há em seu coração? Até que ponto suas ações e palavras são uma fachada para esconder o que há em seu coração? Jesus insiste que nosso coração precisa ser puro, limpo e sem mancha.


Naquele dia, quando o reino do céu se consumar, quando houver novo céu e nova terra onde habita somente a justiça, quando Cristo se manifestar, nós seremos como ele (1Jo 3.2). Essa é a nossa expectativa de longo prazo, nossa esperança. Com base nisso, João afirma: “Todo o que tem essa esperança nele purifica a si mesmo, assim como ele é puro” (1Jo 3.3). Em outras palavras, segundo João, o cristão se purifica agora porque puro é o que ele há de ser no final. Seu empenho presente condiz com sua esperança futura. O mesmo tema se repete de várias formas em todo o NT. Em certo sentido, é claro, as exigências do reino não mudam: perfeição é requisito permanente (5.48). Mas disso se conclui que o discípulo de Jesus que anseia pela consumação do reino em sua perfeição já está determinado a se preparar para ele agora. Sabendo que já está no reino, ele se preocupa com a pureza porque reconhece que o Rei é puro, e o reino em sua forma perfeita só admitirá pureza.


Os puros de coração são abençoados porque verão a Deus. Embora isso só se concretizará completamente quando surgirem o novo céu e a nova terra, já é verdade mesmo agora. Nossa percepção de Deus e de seu agir, assim como nossa comunhão com ele, depende de nossa pureza de coração. Deus e malícia, especialmente a religiosa, não combinam! “Verão a Deus” – que incentivo à pureza!

 
 
 

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