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Lei e Evangelhos nas Escrituras - Parte II | Série Lei e Evangelho

1 Naquela hora, os discípulos se aproximaram de Jesus e perguntaram:

— Quem é o maior no Reino dos Céus?

2 E Jesus, chamando uma criança, colocou-a no meio deles3 e disse:

— Em verdade lhes digo: se vocês não se converterem e não se tornarem como crianças, de maneira nenhuma entrarão no Reino dos Céus.4 Portanto, aquele que se humilhar como esta criança, esse é o maior no Reino dos Céus.5 E quem receber uma criança, tal como esta, em meu nome, é a mim que recebe.


 Mateus 18.1-5



No sermão passado, vimos que os cristãos hoje se defrontam com uma dupla tentação. Por um lado, há uma pressão para que a igreja se ajuste ao espírito da época, de modo que os mandamentos não sejam vistos como a Palavra de Deus que sentencia e condena o pecado. Por outro lado, existe a tentação de os cristãos pensarem que o objetivo principal da igreja é produzir uma cultura que ande na contramão do mundo, uma cultura definida por valores bíblicos; o evangelho, nesse caso, é posto a serviço da lei, tornando-se um meio para a moralidade, e não mais a Palavra de Deus que perdoa pecados por causa de Jesus.


Ora, a única mudança que a lei pode trabalhar é a morte (Rm 7.9-11). Ela fecha todos os caminhos que o pecador usaria em uma vã tentativa de escapar de Deus. Onde a lei não encontra seu fim em Cristo (Rm 10.4: “Porque o fim da lei é Cristo, para justiça de todo aquele que crê”), levará ao orgulho ou desespero. Examinando as Escrituras, vemos que Deus fala aos seres humanos de duas formas fundamentalmente diferentes, e até opostas. As Escrituras identificam essa dupla forma de falar como lei e evangelho.


Robert Schulz escreveu: "Ao final do século 18, a teologia ortodoxa luterana estava engajada nos últimos estágios de uma batalha perdida com o Racionalismo e o Pietismo". Walther havia experimentado essa batalha em primeira mão quando estudante universitário na Alemanha, onde foi exposto aos ensinamentos do Racionalismo e do Pietismo. Esses dois movimentos poderosos não favoreceram uma boa distinção de lei e evangelho, deixando as pessoas inseguras sobre a sua situação diante de Deus.


O Racionalismo reduzia a lei de Deus a preceitos morais capazes de serem cumpridos com a ajuda da sabedoria humana natural, não dando espaço para um Salvador que cumpriria a lei por nós em sua vida obediente e sua morte sacrificial. Ao sujeitar as Escrituras Sagradas ao julgamento da razão humana, o evangelho bíblico foi rejeitado como sendo obsoleto. Se a Palavra de Deus não for confiável, o pecador ficará à mercê de seus próprios esforços para levar uma vida moralmente decente. A ética se torna mais importante do que a doutrina.


Já o Pietismo focava na experiência subjetiva do crente, dirigindo-o para o testemunho de suas próprias emoções. Isso novamente põe em dúvida cristãos que estão em luta pela certeza da salvação somente em Cristo. Como jovem, Walther havia sido tiranizado pela incerteza criada em seu coração em razão das exigências do Pietismo/legalismo. Ele relata que foi somente ao ouvir o verdadeiro evangelho de Cristo como a promessa segura e certa de que Cristo é o Senhor de verdadeiros pecadores que Walther encontrou paz para sua alma atormentada. "Quando falamos de experiência, você encontrará o Evangelho como um convidado esporádico, mas a Lei como convidado constante na nossa consciência” (Lutero).


Walther demonstra como a lei de Deus é diferente do seu evangelho na forma como são revelados, no seu conteúdo, na maneira em que ameaçam ou fazem promessas, nos seus efeitos e no que diz respeito às pessoas a quem devem ser pregados. Ele vai mostrar que a lei de Deus não é o caminho para a salvação; ao invés disso, é a Palavra de Deus que revela a ira divina sobre o pecado e ameaça os pecadores impenitentes com a condenação. Enquanto a lei de Deus promete vida para aqueles que a guardam e ameaça com punição todos os que a quebram, ela não tem poder para tornar uma pessoa justa aos olhos de Deus.


É somente o evangelho que declara os pecadores como sendo justos – não por causa de sua moralidade ou boas intenções, mas por causa da obra de Jesus Cristo que cumpriu a lei, sofreu sob a condenação em nosso lugar e ressuscitou dos mortos como nosso irmão. Essa correta distinção é fundamental para que os pecadores quebrantados possam vir a conhecer e confiar na definitiva palavra de boas-novas, a promessa de que somente o sangue e a justiça de Jesus nos dão perdão dos pecados. Esse é o evangelho que nos faz e nos mantém cristãos e que deve predominar em toda pregação e ensino.


O evangelho é verbal; não é um princípio sem palavras. "Pregue o evangelho. Use palavras se necessário" é uma frase atribuída a São Francisco de Assis. Se ele realmente disse isso, provavelmente estava equivocado. O evangelho requer palavras. Não são quaisquer palavras que podem ser usadas, mas palavras que são "espírito e vida" (João 6.63); palavras que são uma promissória daquele que é o único que pode cumprir o que ele próprio promete fazer, a saber, mostrar favor aos pecadores ao perdoar os seus pecados. Somente isso é o evangelho.


Esse evangelho, diz Lutero, "na verdade não é uma coleção de livros de leis e mandamentos que requerem ações de nós, mas é um livro de promessas divinas nas quais Deus promete, oferece e dá a todos nós seus bens e benefícios em Cristo". "Assim nenhuma condição, qualquer que seja, está anexada ao Evangelho; é unicamente uma promessa da graça" (Walther, Lei e Evangelho, pág. 29). A pregação dessa alegre notícia anuncia e concede a justificação de Deus para o descrente somente por causa de Cristo. “Visto que, na sabedoria de Deus, o mundo não o conheceu por sua própria sabedoria, Deus achou por bem salvar os que creem por meio da loucura da pregação” (1Co 1.21).


Distinguir lei de evangelho não é algo que fazemos naturalmente como decorrência da doutrina da justificação pela fé somente. Aqui a advertência de Hans Joachim Iwand é oportuna: “Uma Igreja Evangélica que encara o ensinamento da justiça da fé como auto evidente – mas a respeito da qual ninguém deveria se preocupar mais porque outras questões são mais importantes – tem, em princípio, roubado de si mesma a solução central através da qual todas as outras perguntas são iluminadas. Tal Igreja vai se tornar cada vez mais fragmentada e desgastada. Se tiramos o artigo da justificação fora do centro, muito em breve não saberemos por que somos cristãos evangélicos ou por que deveríamos permanecer sendo.


Como resultado, vamos lutar pela unidade da Igreja e sacrificaremos a pureza do Evangelho; teremos mais confiança na organização da Igreja e no governo da Igreja e prometeremos mais com base na reforma da autoridade cristã e no treinamento da Igreja do que qualquer um desses é capaz de entregar. Se perdermos nosso centro, iremos cortejar o Pietismo, ouvir outros ensinamentos e estaremos em perigo de ser tolerantes onde deveríamos ser radicais e radicais onde deveríamos ser tolerantes.”


Duas doutrinas diferentes


“O conteúdo doutrinário de toda Escritura Sagrada, tanto do Antigo quanto do Novo Testamento, consiste de duas doutrinas que diferem fundamentalmente uma da outra. Essas duas doutrinas são: Lei e Evangelho” (Walther). “Compreender como distinguir Lei e Evangelho proporciona uma visão maravilhosa para a compreensão correta de toda a Escritura Sagrada. Na verdade, sem esse conhecimento, a Escritura é e permanece um livro fechado” (Walther).


Os críticos do cristianismo há muito têm procurado desacreditar a fé tentando localizar diferenças entre os vários autores bíblicos. No entanto, eles não viram a suprema diferença dentro das Escrituras. Deus fala de duas formas fundamentalmente diferentes. Ele fala uma Palavra de lei que ameaça os pecadores com castigo divino, que traz ira, morte e condenação. Porém, ele também fala uma Palavra de evangelho, que promete graça ao pecador indigno, concede perdão dos pecados e entrega vida e salvação. A distinção entre essas duas palavras de Deus tem seu melhor resumo em Romanos 3, quando Paulo escreve:


“Porque ninguém será justificado diante de Deus por obras da lei, pois pela lei vem o pleno conhecimento do pecado. 21 Mas, agora, sem lei, a justiça de Deus se manifestou, sendo testemunhada pela Lei e pelos Profetas. 22 É a justiça de Deus mediante a fé em Jesus Cristo, para todos e sobre todos os que creem. Porque não há distinção, 23 pois todos pecaram e carecem da glória de Deus, 24 sendo justificados gratuitamente, por sua graça, mediante a redenção que há em Cristo Jesus, 25 a quem Deus apresentou como propiciação, no seu sangue, mediante a fé” (Romanos 3.20-25a).


A pureza da proclamação do evangelho se articula na distinção entre lei e evangelho. Gerhard Ebeling escreve: "O erro de não distinguir Lei e Evangelho sempre significa o abandono do Evangelho, permanecendo somente a Lei. Também, quando a Lei não é distinguida do Evangelho, mas se apresenta como sendo Evangelho, ela não é mais devidamente reconhecida como Lei"'. De modo semelhante, James Nestingen observa:


“Quando Lei e Evangelho são inapropriadamente distinguidos, ambos são enfraquecidos. Separado da Lei, o Evangelho é absorvido para dentro de uma ideologia de tolerância na qual a indiscriminação é equiparada à graça. Separada do Evangelho, a Lei se torna uma exigência insaciável, martelando a consciência até destruir uma pessoa. No entanto, quando Lei e Evangelho são adequadamente distinguidos, ambos são estabelecidos. A Lei pode ser colocada em sua exigência plena, de forma que ilumina o caminho para a ordem e através da obra do Espírito nos dirige para Cristo. O Evangelho pode ser declarado em toda sua pureza, de sorte que o perdão dos pecados e a libertação dos poderes da morte e do diabo sejam concedidos na presença de nosso Senhor crucificado e ressurreto”.


Para distinguir lei de evangelho, é preciso saber como se diferenciam.


Walther observa que lei e evangelho se diferenciam de seis maneiras. Primeiro, a lei difere do evangelho pela forma em que é revelada. A lei está inscrita no coração humano, e, mesmo que seja embotada pelo pecado, a consciência testemunha sua verdade (Romanos 2.14-15). "Os Dez Mandamentos foram dados unicamente com o propósito de ressaltar em letras maiúsculas o obscurecido manuscrito da Lei original que havia sido escrito no coração da humanidade" (Walther). É por essa razão que os ensinamentos morais das religiões não cristãs são essencialmente os mesmos encontrados na Bíblia.


No entanto, é diferente com o evangelho, que nunca pode ser conhecido a partir da consciência. Não é uma palavra de dentro do coração; vem de fora, vem somente de Cristo. "Todas as religiões contêm partes da Lei. Na verdade, alguns pagãos, através de seu conhecimento da Lei, avançaram tanto a ponto de perceber que suas almas necessitam ser limpas, que seus pensamentos e desejos necessitam ser purificados. Mas somente na religião cristã você encontrará o Evangelho” (Walther). O fato que a humanidade é alienada de Deus e necessita de limpeza e reconciliação é tema comum a muitos sistemas de crenças.


Somente o cristianismo ensina que o Próprio Deus justifica o descrente. Poderia até ser dito que há uma revelação da lei de Deus, por mais distorcida ou ofuscada que seja, em outras religiões, mas não há salvação em nenhuma dessas religiões porque nenhuma delas tem Cristo e seu evangelho. Nesse sentido, poderíamos concordar com Carl Braaten que a "distinção categórica entre revelação e salvação é fundamental para a construção de uma teologia cristã das religiões biblicamente embasada". Uma coisa é dizer que Deus revela a si mesmo; coisa bem diferente é dizer que ele nos deu o evangelho da salvação em Cristo. "Onde o Evangelho 'não é proclamado, ali Cristo não está presente"' (Lutero). Sem o evangelho, não há fé em Cristo, e, sem Cristo, não há salvação do pecado, da morte e do diabo.


Em segundo lugar, a lei é distinta do evangelho no que diz respeito ao conteúdo. A lei somente pode fazer exigências. Ela nos diz o que devemos fazer, mas é impotente para nos redimir de suas exigências (Gálatas 3.12-14). Como Werner Elert escreve: "A Lei mostra ao homem o que ele deve fazer, não o que ele pode fazer'". A lei fala de nossas obras, sempre mostrando que até as melhores delas estão contaminadas com as impressões digitais de nosso pecado e são insuficientes para a nossa salvação.


A palavra “evangelho” não contém exigências, mas somente a dádiva da graça e verdade de Deus em Cristo. Não tem nada a dizer a respeito de obras de realização humana e tem tudo a dizer sobre a misericórdia de Deus para com os pecadores. "A Lei nos diz o que devemos fazer; o Evangelho não contém esse tipo de instrução. Ao invés disso, o Evangelho nos revela somente o que Deus está fazendo. A Lei fala de nossas obras, enquanto o Evangelho fala das grandiosas obras de Deus” (Walther).


Assista o Sermão completo no Youtube:




 
 
 

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