A gratuidade e o preço do perdão
- Christian Lo Iacono
- 5 de fev.
- 15 min de leitura
1 Bem-aventurado aquele cuja transgressão é perdoada, cujo pecado é coberto.
2 Bem-aventurado é aquele a quem o Senhor não atribui iniquidade e em cujo
espírito não há engano.
3 Enquanto calei os meus pecados, envelheceram os meus ossos pelos meus constantes
gemidos todo o dia.
4 Porque a tua mão pesava dia e noite sobre mim, e o meu vigor secou como no
calor do verão.
5 Confessei-te o meu pecado e a minha iniquidade não mais ocultei.
Eu disse: "Confessarei ao Senhor as minhas transgressões";
e tu perdoaste a iniquidade do meu pecado.
6 Sendo assim, todo o que é piedoso te fará súplicas em tempo de poder te
encontrar.
Com efeito, quando transbordarem muitas águas, não o atingirão.
7 Tu és o meu esconderijo; tu me preservas da tribulação e me cercas de alegres
cantos de livramento.
8 Eu o instruirei e lhe ensinarei o caminho que você deve seguir; e, sob as minhas
vistas, lhe darei conselho.
9 Não sejam como o cavalo ou a mula, que não têm entendimento, que são
dominados com freios e cabrestos; do contrário não obedecem a você.
10 Muitos são os sofrimentos do ímpio, mas o que confia no Senhor, a misericórdia
o cercará.
11 Alegrem-se no Senhor e regozijem-se, ó justos; exultem, todos vocês que são retos de coração.
Salmos 31.1-11
Intimidade: encontrando sua graça
Perdão gratuito; preço infinito
Deus perdoa. Para pessoas contemporâneas, que costumam ter uma visão unidimensional de Deus como um espírito de amor, isso não parece tão extraordinário assim. Para os profetas e autores das Escrituras hebraicas, contudo, o perdão divino era uma maravilha impressionante, em que mal conseguiam acreditar (Carson). Deus é "um Deus perdoador" (Ne 9.17), a quem "pertence a misericórdia e perdão" (Dn 9.9). Todavia, essa misericórdia divina não deve ser vista como algo "líquido e certo". Lemos em Êxodo 34.7 que Deus "guarda a misericórdia em mil gerações, que perdoa a maldade, a transgressão e o pecado, ainda que não inocente o culpado".
As duas declarações — uma em seguida da outra — são surpreendentes para os leitores contemporâneos. Deus perdoa, mas também é tão santo que não pode deixar a injustiça e a maldade passarem sem punição. As duas ideias são muito claras em si mesmas, mas como se harmonizam não é explicado nessas passagens. No mínimo, o texto de Êxodo 34.6,7 revela que o perdão de Deus não é nem simples, nem previsível. Por isso, Davi afirma em Salmos 130.3,4: "Se tu, Senhor, observares iniquidades, quem, Senhor, poderá escapar? Mas contigo está o perdão, para que sejas temido”. Davi não diz: "Claro que perdoas, Senhor — essa é sua função”. Ele treme de perplexidade ante o fato de que o Deus do Universo, a quem devemos tudo, perdoa a rebelião e o pecado.
O profeta Miqueias diz isso de modo ainda mais majestoso: “Quem é semelhante a ti, ó Deus, que perdoas a iniquidade e te esqueces da transgressão do remanescente da tua herança? O Senhor não retém a sua ira para sempre, porque tem prazer na misericórdia. Ele voltará a ter compaixão de nós; pisará aos pés as nossas iniquidades e lançará todos os nossos pecados nas profundezas do mar” (7.18,19).
O enigma de Êxodo 34.6,7 é, na verdade, a tensão que conduz o enredo de todo o Antigo Testamento. Deus se relaciona com pessoas por meio de uma aliança – um relacionamento solene e de compromisso, mas altamente pessoal e íntimo. Os dois lados juram fidelidade um ao outro. "Eu os tomarei por meu povo e serei o seu Deus" (Êx 6.7). A despeito das muitas cerimônias e dos votos de aliança, a história registrada na Bíblia traz um relato de indivíduos e comunidades que quebram o tempo todo suas promessas e obrigações para com Deus. Seria de esperar que isso significasse a anulação e a invalidação da aliança divina. A infidelidade do povo deveria desqualificá-lo para receber a bênção de Deus. Seria de esperar que Deus simplesmente os eliminasse da face da terra.
Contudo, existem inúmeras declarações por todo o Antigo Testamento de que, de algum modo, Deus ainda assim permanecerá fiel, e de que ele nos perdoará e restaurará (Jr 31.31-34; Ez 36.24-29). Pelas páginas da Bíblia hebraica nos deparamos com essa questão: afinal, nosso relacionamento de aliança com Deus é condicional, baseado em nossa obediência a ele, ou incondicional, baseado em seu amor por nós? No fim, sua santidade e justiça serão mais fundamentais do que seu amor e misericórdia, ou será o contrário? Ele nos punirá ou perdoará? A aparente contradição de Êxodo 34.6,7 expressa esse mistério repleto de suspense, essa grande tensão. Como ela será solucionada?
Os autores do Novo Testamento apontam a resposta para todos os enigmas do Antigo. Deus apresentou Jesus como “propiciação, no seu sangue, mediante a fé. Deus fez isso para manifestar a sua justiça, por ter ele, na sua tolerância, deixado impunes os pecados anteriormente cometidos, tendo em vista a manifestação da sua justiça no tempo presente, a fim de que o próprio Deus seja justo e o justificador daquele que tem fé em Jesus” (Rm 3.25-26). Pergunta: a aliança com Deus é condicional porque Deus é justo, ou incondicional porque Deus é nosso justificador? Em razão da grande obra de salvação de Jesus Cristo, a resposta é: as duas coisas.
Quando Jesus morreu na cruz, tomou nossa maldição pela infidelidade, de modo que pudéssemos receber a bênção que ele fez por merecer por meio de sua fidelidade perfeita (Gl 3.10-14). Ele cumpriu as condições da aliança; por isso podemos desfrutar do amor incondicional de Deus. Por causa da cruz, Deus pode tanto ser justo em relação ao pecado quanto justificador em relação aos pecadores.
Não causa surpresa o fato de que, em todo o Novo Testamento, Jesus seja visto como a fonte do mais improvável dos dons, o do perdão divino. Seu sangue é derramado pelo perdão (Mt 26.28: “...isto é o meu sangue, o sangue da aliança, derramado em favor de muitos, para remissão de pecados”); ele ascendeu à mão direita de Deus para conceder perdão (At 5.31: “Deus, porém, com a sua mão direita, o exaltou a Príncipe e Salvador, a fim de conceder a Israel o arrependimento e a remissão de pecados”); e a mensagem com que enviou seus discípulos mundo afora é para "pregar o arrependimento e o perdão dos pecados" (Lc 24.47). Paulo conclui: "Nele temos a redenção por seu sangue, o perdão dos pecados" (Ef 1.7).
Somente em contraste com o pano de fundo do Antigo Testamento e com o grande mistério de como Deus pôde cumprir sua aliança conosco, conseguimos enxergar a liberdade do perdão e seu custo espantoso. Isso significa que nenhum pecado pode nos condenar agora graças ao sacrifício propiciatório de Cristo. Também significa que o pecado é tão sério e hediondo para Deus que Jesus precisou morrer. Devemos reconhecer esses dois aspectos da graça de Deus ou cairemos em um de dois erros fatais: ou acharemos que o perdão é algo que Deus dá facilmente, ou duvidaremos da realidade e da perfeição do perdão que ele nos dá.
Ambos os erros são espiritualmente mortais. Perder de vista o preço do perdão resulta em uma confissão superficial, passageira, que não leva a uma transformação real do coração. Não há mudança de vida. Perder de vista a gratuidade do perdão, no entanto, leva à culpa, à vergonha e ao autodesprezo constantes. Não há nada que nos alivie disso. Somente quando enxergamos tanto a gratuidade quanto o custo do perdão, temos alívio da culpa, bem como libertação do poder do pecado em nossa vida.
Lembrando da gratuidade do perdão
Jesus pagou por nosso pecado. A condenação do pecado não pode mais recair sobre nós, que nos arrependemos e cremos nele (Rm 8.1). Se nos esquecermos disso, transformaremos a confissão dos pecados em uma penitência fatigante, de autopunição, em vez de considerá-la como arrependimento conforme o evangelho.
Martinho Lutero desafiou as autoridades da igreja a debaterem suas 95 teses, que, em 1517, ele afixou na porta da abadia do Castelo de Wittenberg, na Alemanha. A primeira era "nosso Senhor e mestre Jesus Cristo [...] quer que a vida inteira dos crentes seja de arrependimento". À primeira vista, isso parece afirmar que os cristãos nunca fazem nenhum progresso, que estão sempre pedindo perdão por falhas repetidas. Na verdade, ele estava dizendo o oposto, ou seja, que o arrependimento é a maneira pela qual fazemos progresso na vida cristã. Ele é a chave para crescermos profunda e firmemente no caráter de Jesus.
Na visão de Lutero, o evangelho da justificação gratuita — o fato de que somos salvos e aceitos por meio de Cristo, sem que se levem em conta quaisquer das nossas boas obras ou esforços — muda a natureza do arrependimento. Quando esquecemos a gratuidade da graça, o propósito do nosso arrependimento se torna o apaziguamento de Deus. Quando não estamos certos de que Deus nos ama em Cristo, então a confissão e o arrependimento se tornam um modo de nos mantermos bem com Deus, e para isso usamos expressões de dor na esperança de impressioná-lo por nossa sinceridade e levá-lo a ter piedade de nós. Quando se transforma nisso, o arrependimento é hipócrita e amargo até o fim; ele conduzirá apenas a uma sujeição forçada da vontade, e não a uma transformação de visão, motivação e coração.
Lutero acusava esse tipo de arrependimento legalista de ser farisaico por se tratar, na essência, de uma tentativa de expiar nosso pecado. Pode se tornar uma espécie de autoflagelação, de autocrucificação até, por meio da qual tentamos convencer a Deus (e a nós mesmos) de que estamos tão verdadeiramente infelizes e arrependidos que merecemos ser perdoados. Isso não é confissão em nome de Jesus, mas em nosso próprio nome. Tentamos fazer por merecer a misericórdia de Deus através do sofrimento da própria consciência. Todavia, por meio do evangelho aprendemos que Jesus sofreu por nosso pecado. Não temos de nos impor sofrimento para merecer o perdão de Deus. Simplesmente recebemos o perdão conquistado por Cristo.
O apóstolo João escreve que se confessarmos nossos pecados, Deus é "fiel e justo para nos perdoar os pecados" (1Jo 1.9). Ele não diz que se confessarmos nossos pecados, Deus nos perdoa porque ele é misericordioso (embora, claro, isso também seja verdade). A Bíblia afirma que ele perdoa quando confessamos porque é justo. Em outras palavras, seria injusto da parte de Deus negar-nos perdão porque Jesus fez por merecer nossa aceitação, como João prossegue, para ressaltar logo em seguida: "... se alguém pecar, temos Advogado junto ao Pai, Jesus Cristo, o Justo. E ele é a propiciação pelos nossos pecados — e não somente pelos nossos próprios, mas também pelos do mundo inteiro" (1Jo 2.1,2a).
Todos aqueles que estão em Cristo devem ser e serão perdoados. Por quê? Ele tomou sobre si o castigo e pagou a dívida por todos os nossos pecados. Seria injusto da parte de Deus — e desleal em relação à sua aliança conosco — receber dois pagamentos pela mesma dívida. Seria, portanto, injusto da parte dele não nos perdoar. Essa profunda certeza e segurança transformam o arrependimento de meio de expiação pelo pecado em meio de honrar a Deus e realinhar nossa vida com ele.
O arrependimento legalista é destrutivo. Paulo fala sobre o arrependimento do evangelho, que conduz à salvação e “a ninguém traz pesar", em comparação à "tristeza do mundo [que] produz morte" (2Co 7.10). Na religião moralista, nossa única esperança é levar uma vida boa o suficiente para reivindicar a bênção de Deus. Dentro dessa visão, toda ocasião de arrependimento é traumática e artificial
— porque só serve (segundo nós achamos) para reconquistar o favor de Deus por meio da nossa miséria. Sem o firme entendimento da nossa justificação gratuita, admitiremos a transgressão apenas debaixo de grande coação, somente como último recurso.
Nesse caso, nós nos concentraremos no comportamento em si e permaneceremos cegos para as atitudes e o egoísmo por trás dele. Também assumiremos o mínimo de culpa possível, enumerando todas as circunstâncias atenuantes para nós mesmos e para os outros. Quando tentamos nos arrepender dentro dessa concepção legalista — já que nunca podemos saber com certeza se temos sido miseráveis o suficiente para merecer o favor de Deus — jamais conseguimos experimentar a libertação e o alívio de descansar no perdão de Jesus.
Certo pastor se encontrou com um homem que vivia em profunda aflição por um caso extraconjugal ocorrido anos antes. Mantivera-o em segredo da mulher, que depois ficara firme ao seu lado durante uma enfermidade muito grave que ele enfrentara, bem como em alguns reveses profissionais. Ela agora estava morta. Ele não achava que Deus o perdoara. O pastor perguntou por que não. Embora vivesse esmagado pela culpa, explicou que não acreditava ter se arrependido com humilhação suficiente para ser perdoado. O pastor propôs que pedisse perdão não só pelo caso extraconjugal, mas também por não ter um coração completamente contrito. Ele olhou o pastor com surpresa e perguntou se Deus seria capaz de conceder tal coisa. O pastor respondeu: “Jesus teria morrido só por casos extraconjugais e não pelos corações endurecidos?”.
Isso o levou a um divisor de águas. Quando ele entendeu que Jesus pagou o preço também pelo pecado do seu coração inflexível sentiu o coração começar a se abrandar. Uma consciência mais profunda da gratuidade da graça de Jesus – uma graça não condicionada por sentimentos de penitência que fossem perfeitos – trouxe a esse homem libertação e alívio e, por mais irônico que pareça, uma humildade mais profunda e cheia de gratidão diante de Deus.
Tudo isso se encontra na primeira tese de Wittenberg de Martinho Lutero. Saber que somos amados e aceitos apesar dos nossos pecados torna muito mais fácil admitir nossas falhas e delitos. Dá-nos a profunda certeza espiritual e psicológica necessária para reconhecermos sem demora quando erramos. Isso abranda quase todos os conflitos, uma vez que aceitar o erro deixa de ser como arrancar um dente. Isso simplifica muitos problemas pessoais, pois ao enveredarmos por um curso de ação errado, somos mais prontamente capazes de enxergá-lo e de retroceder.
Acima de tudo, podemos recorrer a Deus de maneira mais imediata e frequente por nossos pecados, confessá-los, lembrarmo-nos da morte sacrificial de Jesus e revivermos em pequenas doses a alegria da nossa salvação. Embora sempre haja certa amargura e dor no arrependimento, a compreensão mais profunda do pecado leva à maior certeza da graça de Jesus. Quanto mais sabemos que somos perdoados, mais nos arrependemos; quanto mais rápido crescemos e mudamos, mais profunda é nossa humildade e alegria.
Lembrando do preço do perdão
É errado, então, conceber a confissão como um processo árduo de autopurificação.
A gratuidade do nosso perdão em Cristo corrige esse erro. Contudo, igualmente errado é encarar o perdão com leviandade e esquecer o preço mediante o qual ele foi obtido. Certa vez, Martyn Lloyd-Jones disse que perdoar o pecado foi o maior problema que o Deus justo e santo já enfrentou. Mas logo em seguida ele cercou a declaração das precauções necessárias. Claro que Deus é todo-poderoso e soberano. Entretanto, continuou ele, todos os pecados são como dívidas que precisam ser saldadas. Perdoar uma dívida significa que você absorve o custo e arca com o pagamento. Nossa grande dívida e pecado contra Deus exigiu um pagamento infinito, e a única maneira pela qual Deus poderia nos perdoar era arcando ele mesmo com o custo. Para isso, o Deus Pai enviou o Deus Filho para tomar sobre si nosso castigo, o qual, por sua vez, com o Pai enviou o Deus Espírito aos nossos corações, tanto para nos mostrar quanto para nos ajudar a receber esse perdão de altíssimo preço.
Por que isso é importante? Se você esquece o preço do pecado, suas orações de confissão e arrependimento serão superficiais e banais; não honrarão a Deus nem mudarão sua vida. O teólogo britânico John R. W. Stott, no livro Confess your sins [Confesse seus pecados], reconhece que muitos cristãos adotam a rotina de confessar os próprios pecados. No entanto, a maioria das pessoas não acha que suas confissões as transformam. Em geral, elas sempre retornam aos mesmos padrões nocivos de atitude e comportamento.
Stott argumentou que confessar nossos pecados implica abandonar esses pecados. Confessar e abandonar não devem ser coisas dissociadas; no entanto, a maioria das pessoas confessa — admite que o que fez era errado — sem ao mesmo tempo rejeitar o pecado e voltar o coração contra ele de modo que enfraqueça sua capacidade de tornar a cometê-lo. Precisamos nos sentir internamente entristecidos e chocados o suficiente por um pecado — mesmo cercando todo o processo com o conhecimento da nossa aceitação em Cristo — a fim de que ele perca o poder sobre nós.
Tim Keller conta que ao pastorear em uma pequena cidade do sul dos Estados Unidos, na década de 1970, aconselhou um casal de sua igreja. O marido tinha problemas com uma raiva descontrolada e com frequência dirigia palavras muito cruéis à esposa. “Quando começamos nosso encontro, ele encarou a situação com muita displicência. Entre seu grupo de amigos e em sua própria subcultura, muitos homens eram mais abusivos do que ele. Afinal, justificava para si mesmo, nunca batera na esposa, nem atirava ou quebrava coisas durante os acessos de raiva. Procurei fazê-lo enxergar a gravidade da situação, mas ele não se deixava convencer. Por fim, a esposa saiu de casa.
O homem me procurou em pânico, agora disposto ansiosamente a aceitar todos os meus conselhos sobre como mudar e se reconciliar com a mulher. Insistiu em que estava pronto para se arrepender. Seguiu meus conselhos e ela voltou para casa. Poucos meses depois, no entanto, voltou a usar sua linguagem abusiva, e ela foi embora de vez. Ficou claro que, ainda que infeliz com as consequências do seu comportamento, em momento algum ele enxergou o que havia de errado com o comportamento em si. Por isso, nunca se arrependeu de verdade do pecado que cometia contra a esposa”.
Essa é uma demonstração clássica do princípio de Stott. É possível meramente concordar que algo é pecado sem adotar uma nova perspectiva a respeito disso nem sentir uma nova aversão interior a esse pecado que lhe dê poder e liberdade para mudar. Em outras palavras, existe um tipo de arrependimento falso que na verdade não passa de autocomiseração. Você pode admitir seu pecado, mas não se entristece de fato pelo pecado em si. Fica triste apenas pelas consequências dolorosas em sua vida. Você quer que a dor pare, então põe fim ao comportamento.
No entanto, talvez não tenha havido nenhuma mudança interior real em relação a crenças e expectativas falsas, a desejos desordenados e a autopercepções equivocadas que causaram o pecado.
O marido citado por Keller não enfrentou sua arrogância inapropriada, suas inseguranças, nem a questão da deferência e do respeito exagerados que exigia das mulheres. Seu "arrependimento" era absolutamente egoísta, preocupando-se apenas com a própria dor e não com o sofrimento que estava causando à esposa e a Deus. Só sentia muito por si mesmo, não pelo pecado.
Por essa razão, Stott argumenta que o arrependimento verdadeiro deve ter esses dois componentes — reconhecimento e rejeição. Começamos reconhecendo o pecado pelo que ele é, mas então, "em segundo lugar, nós o abandonamos, rejeitando-o e repudiando-o. [...] [Isso significa] adotar a atitude certa tanto para com Deus quanto em relação ao pecado em si". Para dar um exemplo bíblico, Stott se volta para o maior de todos os salmos penitenciais, em que Davi não apenas reconhece o próprio pecado como ainda diz: "Pequei contra ti, contra ti somente" (S1 51.4). Ele não estava negando que havia errado contra seres humanos — claro que errara. No entanto, estava levando a si mesmo a enxergar que quando pisava nas pessoas, ofendia ao Deus que as criara. Esse princípio está bem visível em Levítico 6.2, quando o texto diz: "Se uma pessoa pecar e cometer ofensa contra o Senhor, negando ao seu próximo o que este lhe deu em depósito, ou como penhor; ou se roubar...". Davi estava levando o próprio coração a enxergar que "todos os pecados são primeiro e acima de tudo um desafio às leis sagradas de Deus" (Stott).
Outro estudo de caso para ilustrar esses dois componentes do arrependimento é o salmo 32. Primeiro, há a simples honestidade. "Confessei-te o meu pecado" (v. 5a). Davi diz que "a minha iniquidade não mais ocultei" (v. 5b). Há várias maneiras de encobrir nosso pecado. Podemos justificá-lo ou minimizá-lo pondo a culpa nas circunstâncias e em outras pessoas. Todavia, o arrependimento real primeiro reconhece o pecado como pecado e assume total responsabilidade por ele. A verdadeira confissão e o verdadeiro arrependimento começam quando se põe fim ao processo de colocar a culpa no outro.
Mas Davi não para por aqui. Diz ainda: "Não sejam como o cavalo ou a mula, que não têm entendimento, que são dominados com freios e cabrestos; do contrário não obedecem a você" (v. 9). A mula não ama ninguém o suficiente para chegar perto só porque a pessoa quer. Tem de ser controlada por meio de recompensas e punições. Só se aproximará se você conseguir fazer com que valha a pena para ela. Só chegará perto por interesse próprio, não pelo seu interesse. Davi não se arrepende como a mula — não o faz só porque as circunstâncias o obrigaram. Arrepende-se por entender que o pecado está à vista de Deus e, por amor, deseja agradar seu Senhor. Assim como o arrependimento verdadeiro só começa quando termina o processo de colocar a culpa no outro, ele também só começa quando a autopiedade termina, e nós começamos a nos afastar do nosso pecado por amor a Deus e não por mero interesse próprio.
Davi não rasteja como um adulador diante de um tirano; ele afirma que "o que confia no Senhor, a misericórdia o cercará" (v. 10). Trata-se de uma referência não ao amor de Deus em geral, mas a seu hesed, seu amor prometido, de aliança, leal. Os cristãos, claro, contam com uma fonte muito maior de grata alegria do que tinha Davi. Ele conhecia a promessa geral de Deus de ser fiel a nós (Gn 15). Mas nós conhecemos o preço e a profundidade infinita da fidelidade divina, por ver que Jesus morreu na cruz em nosso favor.
Portanto, Davi não só reconhece seus atos pecaminosos, mas também descobre as atitudes do coração que levam às transgressões e as oprime, por assim dizer, com pensamentos sobre a grandiosidade e o amor leal de Deus, até que os motivos para a obstinação e o egoísmo comecem a enfraquecer e a ruir. Ele reconhece o pecado com a mente e o rejeita com o coração.
Assista o Sermão completo no Youtube:
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